Fé e fumaça: a tradição religiosa da Jurema Sagrada
- Luiz Henrique B. Carvalho
- 20 de jul. de 2018
- 6 min de leitura
Atualizado: 24 de jul. de 2018

O cheiro das ervas machucadas pelo chão lembram as matas fechadas, a fumaça dos cachimbos indígenas relaxa o corpo e conecta a audiência à sua ancestralidade. Espíritos de índios, escravos anciãos, homens e mulheres que andaram pelos sertões nordestinos há algumas dezenas de anos atrás chegam à reunião e afagam os corações urticantes dos presentes. Seja por amor, dinheiro, emprego, família, não importa. Cada coração carrega sua própria dor. E ninguém sabe cicatrizar essas ardências melhor do que esses espíritos encantados.
Assim os chamam os adeptos da religião Jurema Sagrada, culto de matriz indígena e principalmente concentrado na região nordeste do Brasil. “A Jurema é a jurema”, afirmam os espíritos enquanto passeiam pelo salão do terreiro.
Anderson Magalhães Serpa, 37, é pai, marido, professor da rede estadual de ensino alagoana e carrega o título honrado de juremeiro há dez anos. Nascido e criado numa estirpe dedicada ao culto à Jurema Sagrada, Anderson desviou do padrão familiar e experimentou da doutrina kardecista por quase quinze anos. Ao fim dessa década e meia, percebeu que precisava honrar as raízes da sua ancestralidade, logo após um sonho em que se via num quarto cercado por travessas de barro e troncos de árvore.

“Não há explicações nas formas da Terra”, comenta o juremeiro na tentativa de definir o que significa a Jurema para ele. A “ciência” da religião – assim chamada por seus praticantes, em referência ao poderio mágico e energético do culto – é simples no mundo terreno, mas surreal e metafísico fora dele. A simplicidade comum aos espíritos que se manifestam se traduz nos pés descalços, chapéus de palha e linguajar pobre em gramática, mas riquíssimo em sabedoria.
“No final das contas, nós só queremos cultuar o nosso povo”.
Quatro “tipos” – na falta de um léxico mais apropriado – compõem o culto de matriz indígena. Abrem-se as louvações homenageando os grandes ancestrais do povo brasileiro: os índios. Conhecedores finos das ervas e seus diversos usos, guardiões dos segredos da fumaça, tiveram seu território usurpado pelo homem branco, mas hoje retornam às suas terras para dialogar com seus descendentes ancestrais. Ensinam-lhes a magia das ervas, a força dos unguentos e o poder do respeito à ancestralidade. “As tribos indígenas, principalmente as [tribos] daqui do Nordeste sempre incluíram o culto a Jurema em suas ritualísticas particulares”, explica o juremeiro.

Os índios, então, passaram a ter contato com os negros fugidos nos quilombos Brasil afora. “O negro foi aprendendo o culto do índio, e o índio foi aprendendo o culto do negro”, comenta o sacerdote da Jurema. Por isso, logo após a louvação dos índios, os adeptos do culto à Jurema Sagrada pedem a benção dos seus pretos velhos. Canta-se para os espíritos de escravos idosos na tentativa de achar conforto no jeito manso dos vovôs e vovós quilombolas. Eles vêm em terra e abençoam todos com suas ramas de arruda na mão.
Para o juremeiro Anderson, os índios já praticavam a religião antes mesmos de ela ser nomeada e difundida como tal. “Ninguém dizia que era Jurema nessa época, era só um culto. Mas quando isso chega na cidade, esses ritos chegam nas pessoas tidas como bruxos e bruxas do Brasil”, elabora Anderson.
“A Jurema é o culto pela planta e a planta pelo culto”.
Esses bruxos e bruxas, em comparação ao estigma social da Europa medieval, eram, no contexto brasileiro, os cidadãos que conheciam de plantas, que se comunicavam com algo fora do mundo terreno, com o sobrenatural. Essas pessoas eram justamente os negros, os mamelucos, os rezadores e os benzedeiros, que passam a receber informações dos índios sobre as ritualísticas místicas da fumaça e das ervas. “É nessa mudança antropológica que surge o mestre da Jurema”, afirma o juremeiro. Contudo, ainda nessa época não existia uma organização ritualística em torno da Jurema. “Ninguém chegava para os mestres e lhe diziam: você é juremeiro. Eles eram pessoas espiritualizadas, que percebiam e sentiam informações vindas da sua ancestralidade”.
Há ainda o quarto grupo de espíritos que são cultuados: as mestras juremeiras. “Na Europa, existiam muito mais bruxas do que bruxos. No Brasil não poderia ser diferente”, completa o juremeiro. Todavia, o conjuntura patriarcalista que é comum à maior parte das tribos, não permitia o protagonismo feminino na sociedade. Num culto tradicional como a Jurema, a lógica era a mesma. “Esse contexto facilitou o florescimento mais forte dos mestres e dos índios primeiro na Jurema. Só depois as mulheres foram incorporadas ao culto como juremeiras, de acordo com as demandas da sociedade moderna”.
Estima-se que por volta de 1580 o culto à Jurema Sagrada passou a ser denominado como tal. Ainda assim, é difícil precisar uma data exata. “A gente pode arriscar em dizer que a Jurema é a primeira religião tipicamente brasileira”, reforça o juremeiro. Nesse sentido, é necessário cautela ao agrupar deliberadamente as religiões de “matriz africana”, porque a Jurema Sagrada não se intitula como tal, apesar de seus adeptos utilizarem roupas brancas e seu culto ter a presença de espíritos e do som do atabaque. “Não há influência africana direta. Há influência do brasileiro, porque a Jurema só se torna o que ela é com o marco primordial da religião: a entrada dos mestres no culto”, articula o juremeiro. A influência africana que existe no culto, portanto, é aquela carregada pelos próprios mestres juremeiros, que à sua época convivam com o cotidiano dos terreiros negros. “Mesmo assim, os nossos fundamentos não apresentam nenhuma ritualística voltada para orixás, candomblé ou à Nigéria”. Segundo Anderson, é por isso também que há relevante influência das crenças católicas na religião, pelo fato de os mestres juremeiros também terem convivido sob forte influência da Igreja Católica.
“A Jurema é a menina dos meus olhos”.

A força que a figura de Jesus Cristo tem no culto é evidente. Conta-se entre os juremeiros que teria sido num pé de Jurema que Jesus teria descansado e orado diversas vezes. “Cristo é um dos grandes patronos da Jurema”, reitera o juremeiro Anderson. Canta o ponto:
Jurema, minha jurema/ Da rama eu quero uma flor!
Jurema, jurema sagrada/ Aonde Jesus orou.
“A jurema é uma religião espiritualista, feita por espíritos”, defende Anderson. “Para entender a Jurema intimamente, por completo, só sentando numa cadeira e parando para ouvir sobre ela”. Dessa forma, apesar de todas as influências, como dizem tão sabiamente os espíritos encantados, “a jurema é a jurema”. É um culto organizado, com suas ritualísticas próprias, com seus sacramentos fundamentados – inclusive o batismo -, que não deve satisfação a nenhum outro culto religioso, porque se compreende em si mesma.
“A Jurema é o culto pela planta e a planta pelo culto”, explica o juremeiro. Não é à toa que a religião carrega o nome de uma planta. Há, na verdade, três juremas. “Nós temos a planta, a bebida e a instituição Jurema. Uma está dentro da outra e nenhuma está fora da outra”.
“Desde as tribos indígenas, sempre houve um culto muito forte ligado a essa planta [Jurema], principalmente porque ela facilita o transe do médium para se conectar aos espíritos ancestrais”, explica Anderson Serpa. Até hoje, a bebida Jurema é um mistério que nenhum cientista conseguiu descobrir. “É um dos segredos mais guardados do culto”, afirma o juremeiro a respeito da feitura da bebida.
As ritualísticas da Jurema utilizam não só a bebida, como toda uma variedade de materiais diferentes, como charutos, cachaça, cigarros, ervas de todos os tipos, velas, chapéus, tecidos, cuias de coco, potes de barro, troncos de árvore, e outros mais. O juremeiro Anderson explica que esses materiais facilitam o engajamento energético dos adeptos, porque eles vêem e tocam os objetos, o que condiciona melhor o pensamento para que a magia aconteça. “Religião é mente. Se é mente, é psicológico. E se é psicológico, é fé.”, comenta Anderson.

Karla Cavalcanti, 28, é batizada há um ano nos ritos da Jurema Sagrada, mas já vive a religião há aproximadamente dez anos. “Para mim, a Jurema é a menina dos meus olhos. Hoje ela é o meu apoio e o meu sustento”, define Karla. A adepta conta que tudo o que a espiritualidade já disse a ela que iria acontecer realmente se concretizou. Por isso, ela nunca toma decisões em sua vida sem antes consultar sua ancestralidade. “Ter o apoio de uma pessoa experiente e vivida, que sabe o seu passado como ninguém, que consegue ler minha alma e o meu futuro, é uma coisa que me faz sentir privilegiada em poder acompanhar o trabalho de um mestre ou de um caboclo”.
Karla frequentou o kardecismo por quase dez anos, mas relata que se encontrou de fato no culto à Jurema. “Nós não tínhamos o acompanhamento que hoje temos. Os nossos espíritos estão conosco cotidianamente”.
Infelizmente, a luta contra o preconceito faz parte da rotina dos juremeiros. O termo “catimbó”, sinônimo de fumaça e da tradição religiosa da Jurema, ganhou sentido extremamente pejorativo ao longo dos anos, ao lado de “macumba” ou “mandinga”. “Catimbó é o ato de fazer magia, no sentido da busca pela espiritualidade”, explica o juremeiro Anderson. Por “fazer magia”, entende-se manipular energias, ervas, forças para elevar e acalmar a espiritualidade dos que frequentam a religião. “No final das contas, nós só queremos cultuar o nosso povo”, complementa Anderson. “Fazendo catimbó a gente se permite conhecer quem é nosso povo e qual é nossa cultura”.
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